Tuesday 5 August 2008

Entevista c/ Bettendorf the killer

Entrevista com João Felippe Betendorf com Dutra
21 07 2008

Uma das grandes contribuições do historiador e filósofo Michel Faulcault para o pensamento contemporâneo é a destituição do gênio de seu pedestal. Para o grande pensador francês, no âmbito da ciência, o gênio (o homem ou a mulher geniais) não existe, ao menos da forma como o senso comum o constrói.

Na produção do conhecimento científico o que existe é aquilo a que Foucault (morto de aids em junho de 1984) chamou de “formação discursiva”, isto é, o saber científico vai sendo construído ao longo de gerações, acumulando-se. Em certo momento, um pesquisador ou um grupo deles sintetiza parte desse conhecimento acumulado e revela uma nova descoberta, algo novo para a humanidade.

Sob esse ponto de vista, nem Einstein foi um gênio, pois ao elaborar as suas teorias revolucionárias, vários outros cientistas, antes dele, já vinham construindo teorias que, de um certo modo, viriam a contribuir para os achados espetaculares de Einstein.

Adaptando-se o pensamento de Foucault, podemos dizer que também, no âmbito da História, a figura do gênio e do herói são construções intencionais, ideológicas, sempre produto da imaginação de historiadores que contam as peripécias dos vencedores. Todos sabemos que os perdedores não contam a sua história, mas são revelados pelo ângulo de quem venceu, logo…

Toda essa introdução é para revelar um aspecto da vida de Betendorf, oficialmente considerado e festejado como “Fundador” de Santarém, Pará, aspecto quase sempre ou sempre sonegado nos livros de “efemérides” ou “momentos” históricos que tristemente circulam nas mãos de crianças e jovens das nossas escolas.

A História é contada em pedaços, com a supressão de fatos que deixariam nus os gênios e os heróis. E pior, até mesmo declarações escritas pelo próprio João Felippe Betendorf são suprimidas, como se o herói luxemburguês/santareno pudesse, dessa forma, condenar-se a si próprio numa cidade onde sua memória é reverenciada sem críticas, pois “Gênios” e “heróis” fabricados são incriticáveis. (…)

Vejamos a seguir um trecho do primeiro sermão do Padre Betendorf ao povo que aqui vivia e aos quais os portugueses passaram a chamar genericamente de índios, em 1661, logo à chegada ao sítio onde seria construída a cidade de Santarém (o trecho mantém a grafia da época e está numa das páginas da Chronica, cujo autor é o próprio jesuíta):

“Filhos, como eu sou ainda pouco praticado em os estylos destas terras, pela pouca assistencia que em ellas tenho feito até agora, por haver pouco que sou vindo do Reino, desejando eu saber o verdadeiro modo de as governar, ouvi dizer que haveis de ser governados com pancadas como se governam os brutos, por não seguirdes a razão que Deus deu aos homens para se dirigirem por ella; não me posso persuadir que isto seja assim e portanto quero fazer experiência antes de crêl-o. Olhae os Mandamentos da Lei de Deus, todos se fundam em a razão, e quem os seguir deve-se chamar homem racional, e pelo contrario quem não os quer seguir este se póde chamar de bruto, e se deve governar com pancadas como se governam os animaes irracionaes”.

Em outro trecho da Chronica, prossegue Betendorf:
“… lhes fui propondo os Mandamentos da Lei de Deus um por um, mostrando-lhes que eram mui conformes á lei da razão. Approvaram elles todos … e, chegando ao sexto e ao nono, perguntando se lhes parecia bem andar algum com mulher não sua, respondeu-me logo um que, se sua mulher lhe fizesse adultério, a botaria ao rio. Disse-lhes eu, então: - Ora, basta-me isso, filhos, para conhecer que não haveis de ser governados com pancadas à maneira de animaes brutos, mas como homens de razão…”

Se, por um passe de mágica de retorno ao passado (um dia isso será possível), me fosse dado entrevistar o “Fundador” com base naquele primeiro sermão e na descrição que a segue, faria estas perguntas que, depois de estudar um pouco da História, imagino que o jesuíta responderia desta forma:

Pergunta (P) – Cristo veio ao mundo para afirmar o primado do Amor sobre a razão. No seu sermão e na descrição de sua catequese, o senhor não emprega a palavra Amor, mas dá ênfase à razão. Não está distorcendo o evangelho?
Betendorf (B) – Mas isso é pergunta que se faça? O homem é razão antes de ser amoroso. É a razão que explica o amor.

P – Inclusive a razão colonial e predatória dos portugueses?
B – Isto não é predação, é ação civilizatória e cristã.

P – Antes de vir para o Brasil como missionário jesuíta o senhor saiu da sua Luxemburgo para se formar em Direito Civil na Itália. Esse seu sermão aos índios Tapajós está mais para a lei ou para o evangelho?
B – Como assim? Que pergunta despropositada é essa, eu sou um missionário…

P – Quem o enviou, então, já que missionário significa alguém que foi mandado em missão, qual a sua missão?
B – Eu fui mandado por Jesus Cristo e a minha missão é salvar as almas destes… Olhe, o meu sermão é puro evangelho, estou cumprindo o mandato de ir por todos os cantos do mundo chamar a todos os homens para a Boa Nova…

P – Então a Boa Nova implica também em pancadaria em cima dos índios? O senhor está dizendo que foi mandando por Cristo, mas ele não disse: “Ide por todo o mundo e pregai a Boa Nova”… Pelo que se lê na Bíblia, lá não fala em pancada nos que ainda não crêem no Evangelho, bem pelo contrário…
B – É que eu venho também em missão civilizatória, nós estamos chegando da Europa para transformar essa gente em gente, igual a nós, ops!, igual só na alma, porque eles não são brancos, são baços, e nesse aspecto serão sempre diferentes…

P – Diferentes? Em que capítulo do Evangelho está descrita essa diferença? Cristo não disse: “Para que todos sejam um, como eu e o Pai somos um”?
R – É que a catequese faz parte de todo um processo de colonização, esses povos diferentes parece que têm também alma, mas a empresa colonial só deseja o corpo deles para o trabalho escravo, então eu venho cuidar das almas e pregar que a escravização purifica o corpo e a alma para a salvação eterna.

P – Já faz mais de 1600 anos que Cristo disse o que disse, entronizou o Amor como fundamento da convivência humana, não é? Ele disse, inclusive, que o Amor precede a Lei, que São Paulo repercutiu mundo afora. Então, jogar a mulher adúltera no rio, prática que o senhor aprova entre os índios Tapajós, não é o oposto do Evangelho, quando narra Cristo defendendo a prostituta das pedradas daqueles mesmos que abusavam dela?
R – Sou um missionário e sou também jurista. Logo, vejo amor e lei caminhando juntos. A Igreja é um conjunto de leis que se acham no Código do Direito Canônico, então…

P – Mas Cristo não elaborou nenhum conjunto de leis. Quando ele viveu, ele se opôs à dominação do Império Romano na Palestina, e por isso pagou caro, não foi? O senhor, chegando aqui trazido pelo Império Português, não está na posição oposta, abençoando e benzendo a dominação dos Tapajós, a destruição de sua cultura, impondo-lhes um deus estranho a eles, sem nenhum respeito. O senhor é missionário ou apenas um integrante da empresa colonial que chegou para explorar e levar as riquezas para a Europa. A sua catequese é um cala-boca para os índios, não? Até paulada o senhor promete, não?
R – Não vou mais responder. É muito despropósito. Não posso prever, mas imagino que daqui a algum tempo, no futuro, alguém vai escrever que “se a imprensa não existisse, seria preciso não inventá-la”. E não esqueça, a Santa Inquisição está a pleno vapor na Península. Suas carnes poderão ir para a fogueira para purificar seu espírito de tanta sandice e provocação a um representante de Deus na confluência do Amazonas com o Tapajós.

P – Ah, o senhor deu uma colher de chá à índia Moaçara, tecendo rasgados elogios a ela. Na sua Chronica, o senhor afirma que ela era uma princesa dos Tapajós, não é? Então havia uma mulher que não mereceria, jamais, ser afogada nas águas do Tapajós…
R – Bem, bem, a Moaçara … ela se casou com um português… Já se tivesse casado com um destes brutos…

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* Santareno, é jornalista e professor-doutor. Escreve regularmente no blog do Jeso Carneiro.

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